Mico-leão-dourado - Mata Atlântica - Foto/Araquém Alcântara
O risco de extinção das espécies brasileiras é evidente e aumenta a cada dia. Mas o problema pode ter começado muito antes da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil
No fim de 2000, uma ararinha-azul macho que vivia livre na natureza sumiu de Curaçá, no sertão baiano. Foi o ato derradeiro de uma luta que ecoou muito além dos limites do semiárido nordestino. A menor entre as araras brasileiras, de nome científico Cyanopsitta spixii, era uma sertaneja forte, de asas longas, com voo sofisticado e econômico de energia, adaptada ao ralo alimento encontrado no semiárido. No entanto, essa espécie evoluída em termos adaptativos era bela demais, e não forte o bastante, para resistir à predação humana.
Extinções sempre existiram, pelo menos há 3 bilhões de anos quando teve início a vida no planeta. A grande maioria das espécies que surgiram não está mais aqui. E a biodiversidade que conhecemos é resultado de complexa teia de seleção de espécies mais bem adaptadas a cada condição natural. O ser humano provocou mudanças sem precedentes na trajetória da vida. Em alguns milhares de anos, ele conquistou todos os continentes, dotado de um poder destrutivo comparável aos fenômenos responsáveis pelas extinções em massa no passado remoto - a exemplo do súbito desaparecimento dos dinossauros.
Quanto já extinguimos? "Os biólogos acham difícil apresentar sequer uma estimativa aproximada da hemorragia, porque, para começar, sabemos pouquíssimo sobre diversidade. Extinção é o processo biológico mais obscuro e localizado", explica o naturalista americano Edward Wilson. E arrisca: "A atividade humana aumentou a extinção em mil e 10 mil vezes além desse nível [o nível natural] nas florestas tropicais apenas pela redução de sua área. Claramente estamos vivendo um dos grandes espasmos de extinção da história geológica".
A ararinha-azul foi dizimada pela avidez dos traficantes de pássaros, estimulados por colecionadores que chegavam a pagar até 40 000 dólares por um único espécime. Como no processo econômico de oferta e demanda, o valor inflacionou à medida que a ave rareava. Em 1995, pesquisadores chegaram a soltar no sertão uma fêmea nascida em cativeiro. Mas o tão esperado acasalamento nunca aconteceu.
Após o sumiço do macho de Curaçá, a guerra passou a ser travada em cativeiro. O objetivo é parear os cerca de 70 exemplares existentes mundo afora, "contemplando o máximo de diversidade genética possível", informa a bióloga Yara Barros, coordenadora de cativeiro do Comitê Permanente para Recuperação da Ararinha-Azul, vinculado ao Instituto Chico Mendes. "O desafio para os próximos anos é aumentar a população em cativeiro para, no futuro, tentar a soltura na natureza." Uma questão crucial é se as matrizes existentes ainda poderão dar conta de manter uma população viável. "Infelizmente, isso é o que temos", resigna-se Yara. Além da herança genética, há os aspectos de conhecimento e aprendizagem que passam de pai para filho, como busca por alimento e técnicas de proteção contra predadores. Se a espécie retornar de fato ao ambiente, esses hábitos deverão ser reaprendidos.
O impacto da ação humana no Brasil pode ser bem mais antigo que o desembarque da esquadra de Cabral há 500 anos. Na realidade, o ser humano chegou à América do Sul há pelo menos 12 mil anos, e os primeiros grupos que povoaram os campos no continente conviveram com uma fauna estranha aos dias atuais. Os caçadores nômades foram atraídos pela fartura de grandes mamíferos, como preguiças, tatus gigantes, e outros animais, como elefantoide, toxodonte e esmilodonte - alguns maiores que bois. A chegada do ser humano coincidiu com a súbita extinção dessa megafauna, o que sugere uma associação entre os dois eventos. Os homens teriam se fartado tanto com a abundância quanto com a facilidade de caça, sem dar conta do extermínio. É apenas uma hipótese, mas pode ter sido o prenúncio do que estava por vir.
Até os portugueses aportarem, não há indícios de nenhum evento de impacto tão profundo como o extermínio da megafauna - várias espécies teriam sido extintas logo no começo da colonização. Segundo relata o historiador Warren Dean, o cronista Fernão Cardim havia descrito uma ave de penas de "quase todas as cores em grande perfeição, a saber, vermelho, amarelo, preto, azul, pardo, cor de rosmaninho, e de todas estas cores tem o corpo salpicado e espargido", que não corresponderia a nenhuma espécie encontrada nos dias atuais.
O resultado é que o Brasil é hoje o segundo país em número de espécies ameaçadas. Está atrás apenas da Indonésia, de acordo com a Fundação Biodiversitas - entidade encarregada da lista vermelha de espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção que segue metodologia da União Mundial para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). De acordo com o último levantamento, existem 627 bichos ameaçados no Brasil, contra os 207 relacionados em 1989. Há sete espécies extintas definitivamente e duas extintas na natureza. "Em 1989, participaram do levantamento 22 especialistas; já em 2003 [data da última pesquisa realizada] foram 227 pessoas", explica Rafael Thiago, da Biodiversitas. "As descobertas de novas espécies e as pesquisas aumentaram; porém, ainda conhecemos bem pouco sobre nossa fauna. Mas as pressões também se tornaram mais agudas", diz. Embora imperfeitas, as listas ajudam a subsidiar políticas públicas de conservação, a fomentar a pesquisa e o manejo, e até estimulam a criação de unidades de conservação.
Não fosse uma espécie vistosa, o desaparecimento da ararinha-azul sequer teria sido registrado. As araras fascinam. Foram os bichos mais perseguidos durante a formação do Brasil, e serviam de símbolo para identificar a colônia nos mapas, com diz a legenda: "Brasilia sive terra papagallorum". Espécies exuberantes tanto atraem a cobiça de caçadores, como são capazes de sensibilizar as pessoas sobre a importância de conservá-las na natureza. E a bandeira levantada em favor de sua proteção, quando bem articulada, ajuda a proteger o bioma em que ela está inserida. É uma estratégia conservacionistas. É assim com a onça-pintada, com as baleias franca e jubarte, com outras araras; com o peixe-boi, com os primatas de forma geral e com as tartarugas-marinhas: são bichos que representam a natureza brasileira e catapultam os esforços para conservá-la.
É o caso do mico-leão-dourado, diminuto primata endêmico das florestas de baixada da Mata Atlântica no estado do Rio de Janeiro. A ação de traficantes de animais, associada ao desmatamento, reduziu a população a cerca de 250 indivíduos, em meados da década de 1960. Foi quando o alarme soou, graças à voz quase solitária do primatólogo Adelmar Faria Coimbra Filho, integrante da pioneira Fundação Brasileira da Conservação da Natureza (FBCN), cujos estudos culminaram na criação da primeira reserva biológica no país, a de Poço das Antas, em 1974. Mas a área da reserva não era suficiente para abrigar uma população viável de micos, que precisariam de fragmentos da floresta dos arredores em propriedades particulares. Sem áreas conectadas, as populações se isolariam.
Avançar as áreas florestadas para dentro das fazendas implicava romper paradigmas, como lembra a atual coordenadora do projeto Denise Rambaldi, laureada no ano passado com o Prêmio Liderança em Conservação na América Latina, da National Geographic Society. "A primeira pergunta que o fazendeiro faz é sobre o custo de oportunidade: 'Quanto eu vou perder de pasto?' Mas nós procuramos pegar pelo lado emocional, embora hoje em dia já tentamos remunerá-los, pondo as terras nos mecanismos de compensação com créditos de carbono", explica ela. Foram longos processos de negociação, e os fazendeiros envolveram-se a tal ponto que a Associação Mico-Leão-Dourado, criada em 1992 para gerir o projeto, tem hoje um como presidente. E Poço das Antas ganhou em seu entorno 17 áreas protegidas na modalidade Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), criadas por iniciativa dos próprios fazendeiros.
Sob os auspícios do pequeno mico, cuja população na natureza, no fim de 2007, somava 1,6 mil indivíduos, a Mata Atlântica como um todo se beneficiou. "O mico-leão-dourado mudou de status na lista global de espécies ameaçadas, passou de 'criticamente ameaçado' para 'ameaçado'", diz Denise. Para se ver livre do risco de extinção, deverá haver, segundo modelos matemáticos, pelo menos 2 mil indivíduos na natureza até 2025, em uma área contínua de 25 mil hectares.
Transformações culturais estão na espinha dorsal de qualquer plano para salvar espécies, mas, quando o imperativo econômico fala alto, se erguem barreiras espinhosas. O drama da onça-pintada é emblemático. Segundo o biólogo Tadeu Gomes de Oliveira, no fim dos anos de 1960, matavam-se 15 mil onças por ano - somente pelos dados oficiais de exportação de peles. Apesar da proibição, em 1967, de se comercializar essas peles, matar onça ainda faz parte do cotidiano em muitos grotões no Brasil.
O Pantanal Mato-Grossense é um dos últimos refúgios desse grande mamífero. Mas por onde o gado de corte se espalha o embate é feroz. Algumas iniciativas tentam conciliar a atividade de pecuária com a sobrevivência do bicho. É o caso do projeto comandado pelo biólogo Peter Crawshaw nos arredores de Corumbá. "Iniciamos o pastoreio noturno com trator. Quando o tratorista percebe que o gado está inquieto, ele solta rojões na direção do mato", explica. "Isso tem diminuído muito a predação. O próprio gado se dá conta de que o trator é uma proteção, e fica próximo a ele." Os rojões afugentam a onça. Um alerta de que ali é o território do bicho homem. Pantaneiros forjam assim um acordo de boa convivência com as onças. Bom para ambos. Pois bichos e gente, como estamos aprendendo a duras penas, são partes do mesmo todo.
Como todas as espécies de animais, as aves que vivem no bioma mais devastado são as mais ameaçadas de desaparecer. E a Mata Atlântica, em que sobrou apenas 7% de sua composição original, é o hábitat de bichos em maior perigo de extinção. Principalmente os endêmicos, como a jacutinga, que sofre também por se alimentar do coco do palmito juçara, uma planta igualmente ameaçada em razão da ação de palmiteiros ilegais. A destruição do hábitat também é a ameaça ao pato-mergulhão - antes visto facilmente em rios da serra da Canastra e regiões montanhosas de Minas Gerais. O mesmo ocorre com animais endêmicos de regiões da Amazônia, como o cada vez mais raro mutum-de-penacho. A ave vive nas regiões do leste do Pará e Maranhão, justamente uma das partes mais ameaçadas do bioma, situada no arco do desmatamento.
O desaparecimento de espécies que constituem a base da cadeia alimentar desequilibra todo o ecossistema. O sumiço de um anfíbio, por exemplo, pode ter um efeito dominó devastador na alimentação de várias espécies de vertebrados. O mesmo ocorre com os insetos e a flora, como briófitas, pteridófitas e bromélias. As mudanças climáticas e a poluição atingem primeiro esses seres mais sensíveis, que são indicadores das mudanças que ocorrem no planeta. Por isso tem sido verificado o desaparecimento de sapos e anfíbios, mas que agora está sendo agravado pela ação do fungo quitrídia. Já os peixes, no país que possui a maior quantidade de água doce do mundo, equilibriam os rios, que por sua vez hidratam as matas. Mas a cadeia de pesca desregulada coloca em risco a fauna aquática. E o equilíbrio advindo dela, como o controle da proliferação de pragas e insetos na beira de rios.
Encontrar hoje um cachorro-do-mato-vinagre na natureza é como ganhar na loteria - ao menos para um fotógrafo de natureza. Mas trata-se de um prêmio a ser comemorado com parcimônia, tal é a vulnerabilidade da existência dessa espécie. Ele nunca foi caçado por interesse econômico, em razão de sua bela pelagem, como ocorreu até os anos 1960 com a jaguatirica e outros felinos. No entanto, é a destruição do hábitat a maior ameaça a sua existência. O mesmo ocorre com a maioria dos mamíferos que habitam o território brasileiro.
Constar nas listas de espécies ameaçadas é o primeiro passo que dá início a uma série de ações que visam impedir a extinção do animal. Para isso, o Ibama e a Fundação Biodiversitas produzem um documento técnico sobre a situação de perigo de desaparecimento de cada animal. Foi dessa forma que o peixe-boi começou a receber proteção especial de pesquisas e recursos no litoral do Nordeste e na Amazônia para sobreviver.
Marcelo Delduque
Fonte: National Geographic Brasil
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